sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Carta encontrada...

Hoje cedo, eu estava saindo para o trabalho, tropecei no degrau da portaria do prédio e, me recompondo, vi na calçada um papelzinho meio rasgado e molhado, provavelmente da chuva de ontem. Povo mal educado, pensei. Fui pegar o trapinho para jogar no lixo e, quando me agachei, percebi que tinham alguns manuscritos. Era uma carta. Comecei a ler, não consegui parar, fui até o final e ali mesmo, na porta de casa, os meus olhos enxertaram-se em lágrimas.

Era uma carta da Mariana para o Vítor. Não os conheço, não sei os seus sobrenomes, quem são os seus pais e muito menos onde moram, mas achei linda a história deles, é do tipo para chamar de minha.

E foi assim que começou o meu dia, decidi compartilhar.
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Vítor,

“Olhos nos olhos, quero ver o que você faz”. Quero saber como vai você, que agora está aí do outro lado do balcão, que me deixou e depois me disse para eu ser feliz, que ficasse bem. Eu quase enlouqueci, conversei com as paredes, tive um edredom gigante só para mim, o sofá, os livros, as cartas, tive que lavar todas as roupas sozinha, cozinhar para o nada, fiquei dias e dias no vazio assistindo todas as novelas, das seis, das sete, das oito, levei meses para acabar com aquela série americana do médico que a gente adorava - e que não me lembro do nome agora -, era aquele Dr. Barbudinho, e nos intervalos eu me alternava entre os sorvetes importados que restaram e os filmes piratas do Woody Allen que compramos. Lembra? Assisti todos.

Quando você me deixou, Vitor, eu não pensava em reencontro e acho que você muito menos. Você se mudou de mim, quis que eu fosse feliz e que passasse bem, porque a vida segue, mas acho que você desejou também que eu ficasse com uma pitadinha de ciúme e eu, como era de costume, obedeci. Segui à risca. Os ciúmes não passaram, acho que nunca vão passar, mas a outra parte eu dei conta, afinal lá se foram dois anos desde que você se foi. E aí, meu bem, como você sugeriu, hoje eu passo bem. Cantarolo na chuva, me divirto com o meu guarda-chuva vermelho e o meu tênis all-star amarelo sujo, pego ele, ando, ando, ando, vou à praia, ao cinema, ao teatro, faço compras, vira e mexe eu saio com o meu fone de ouvido e o volume do ipod no último, que é para o mundo não me incomodar. Hoje eu sou maior que ele, me sinto mais importante do que tudo, todos ou os outros. Eu consegui. Mais do que nunca, hoje eu sou eu, inteira, e eu sou dez depois dessa passagem da minha vida sem mim.

E quando quiser me rever, meu bem, e não precisa ser depois da lama, nem no final do túnel ou daquela ponte, sem deboche, eu digo, talvez me encontre já refeita, ou não, tanto faz, pois a mim não importa o que será o amanhã. O que importa mesmo é que, havendo reencontro, eu quero olhar nos teus olhos cor de mel, às vezes negros, lindos, quero ver o que você ainda sente por mim. Quero sentir. Eu quase morri, fiquei depressiva, mas tantas águas rolaram, tantas pessoas vieram, virão ou foram de nossas vidas, e mesmo assim eu sinto que ainda existem interconexões muito claras entre nós. Na verdade, é um pouco estranho, a minha sensação é que tudo passa. O tempo, a vida, as pessoas, as charretes, os carros, as aeronaves, as espaçonaves, mas a gente fica sempre. Mesmo que distante, às vezes. A gente fica nesse de querer se amar para o resto da vida meio que sem assumir, é que eu acho que ambos somos muitos orgulhosos para chegarmos a esse ponto e nos declararmos. Já nos refizemos, tomamos os nossos rumos e ficamos um pouquinho rancorosos também, não é de se negar.

Mas se um dia realmente quiser me rever, e que queira, quem sabe, a casa ainda é sua, mesmo que já haja alguma nova decoração para me tapear. Passa lá, quem sabe a gente não assiste de novo aquela série do Dr. Barbudinho? Vai me encontrar diferente, é verdade, e eu a você, mais inteiros em umas partes, menores em outras, pequenos, mas não nos façamos essa desfeita. Eu estou estudando cinema, fiquei sabendo que você parou com a militância, que está mais magro e cabeludo, eu também estou com uns quilinhos a menos, sei também que namorou, separou, e eu também. São tantas mudanças, mas há uma essência que fica e é justamente ela que eu senti hoje pela manhã e que me impulsionou a escrever-te.

Então, se um dia nos reencontrarmos, e não estou fazendo um convite, é apenas um vislumbre, que sejamos o que a gente quer, o que a gente pode, porque a gente pode. Pois, no final das contas, a gente descobriu junto que o nosso maior amor está na gente mesmo. E é curioso ter de encarar o fato que tivemos que nos separar para descobrirmos que a gente é um pouco um ao outro, mesmo nas brigas, nas frestas, no sexo, a gente é meio um o outro porque a gente gosta do jeito que a gente é. Um ao outro.

“Olhos nos olhos” é a música do Chico que me inspirou hoje a escrever-te, roubei dela algumas palavras. Quem sabe na semana que vem não é a sua vez? Eu bem aceitaria um Vinícius, sei lá, sempre lhe cai bem. Surpreenda-me. Mesmo machistinha, eu acho que você consegue. Não sei como vou estar na semana que vem, é uma outra história, mas acho que uma hora ou outra teremos que aceitar a dura realidade que a vida nos pregou, porque agora não dá mais, ferrou, é com a gente mesmo. Porque mais importante do que isso tudo, essa de sermos inteiros, de atravessarmos a ponte, nos reconhecermos e nos reencontrarmos, e acho que isso tudo fez muito bem pra gente, é perceber que às vezes eu fecho os olhos à noite, antes de dormir, e lembro-me desse negócio de olhar-te nos olhos, fixamente, e me desconsertar, te desconsertar, trocar piscadelas marotas e desviadas, um pequeno sorriso. É que quando eu olho nos teus olhos e os teus me olham, os meus lábios ainda tremem, a carne fica trêmula, eu fico, a minha boca fica oca da tua língua e a minha língua fica à míngua sem a tua boca, e talvez a sua, roubei essa passagem do Ney, e aí vejo que não dá mais para aguentar. Até hoje, vez em quando eu me masturbo e acordo com o cheiro do seu sexo nas minhas mãos. Então eu aceitei que, mais impossível do que ficarmos juntos, é a possibilidade de vivermos longe um do outro.

Em relação a você, eu não desisti em nenhum dia na minha vida, não é agora que eu o faria. E não é porque hoje eu estou bem que significaria o contrário. Então que olhemos sem pressa para a frente, daqui a pouco, para os olhos dos outros, para os olhos do mundo, que observemos o futuro aos nossos olhos, o nosso presente, à nossa maneira, rindo um pouco do passado. E que isso seja o bastante para termos certeza de que o melhor a se fazer para o resto da vida, depois do nosso sexo, do nosso beijo e das nossas trocas de olhares, é voltar para debaixo das cobertas e assistir aos filmes do Woody Allen com todos os sabores daquele sorvete importado que a gente tanto adorava. Bye, bye, estou indo lá na locadora.

Um beijo, te cuida.

Mariana.

24 de novembro de 2011


E a música que a Mariana citou é essa aqui ó... Olhos nos olhos.


3 comentários:

  1. Linda carta encontrada nessa sexta chuvosa. Lindo ter Chico e Vinícius. Às vezes a jornada é mais importante do que se chegar ao fim. Se é que há fim. Que Mariana, Vítor e todos nós sejamos felizes e que seja doce (eu sempre citando Caio). Beijo.

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  2. Seus comentários sempre lindos e carinhosos. Nessas matérias, realmente é impossível não citar Caio F.

    Que Mariana reencontre Vitor, ou o contrário, e que seja eterno enquanto dure, adoro essa, ou até que venha a próxima!

    Beijos.

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  3. Um pouco de Manoel Bandeira também. Para Mariana e Vítor nos reencontros ou o contrário.

    "Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
    A alma é que estraga o amor.
    Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
    Não noutra alma.
    Só em Deus - ou fora do mundo.

    As almas são incomunicáveis.

    Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

    Porque os corpos se entendem, mas as almas não"

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