quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Mais do mesmo

O ano começa agora para mim. E é agora que o ano do blog começa também. Roda-gigante frenética essa minha vida, retrocesso sinistro esse retorno à capital. Parecem-me não terem sido suficientes, as férias, por mais que eu ainda não tenha dado conta de que acabaram. Ou talvez esteja fazendo-o, agora, no momento em que escrevo esse texto. Voltei, é. E na volta o choro veio novamente. Só que é um choro um pouco diferente de antes, não caem lágrimas, é de dentro, não sei bem explicar, e também não é só meu, é nosso, vem um pouco carregado dessa difícil missão de retornar à realidade, ou melhor, de encará-la de frente.

A desconexão é muito clara, estamos indo para um lugar muito pior do que estávamos pouquíssimos dias atrás. É só ficar alguns dias fora que a percepção torna-se ainda mais clara: mais do mesmo, nada mudou. Variações sobre os mesmos temas. Blá, blá, blá. É coxinha pra lá, coxinha para cá, os políticos continuam a mesma m... erda de sempre, com direito a qualquer trocadilho possível, enchentes, enchentes e mais enchentes, o carnaval lindo de beagá com marchinhas censuradas, a ineficiência do poder público, preconceito com tudo e todos, e em todas as classes, pau geral. Pane. Hora de pular de alguns barcos e jogar-me em outros novos, como bem adiantei outro dia no texto "Lutamos como nunca, perderemos como sempre?"Estou um pouco perdido, confesso, meio que desnorteado com isso tudo que chamamos de rotina, de cidade grande, de velhos amigos, do dia-a-dia, do tudo igual, do mais do mesmo. Ira.

Nas férias, li cinco livros, depois falo sobre eles, mas o que mais me pegou foi o “Pequenas Epifanias”, seleção de crônicas do Caio F., editado depois de sua morte. É surpreendente, e é de onde retirei o texto abaixo, que é de 1987. Muito mais atual, contemporâneo e decente do que todos os salgadinhos descentes que vemos por aí. Fala de aids, mas fala de tantas outras coisas também... Para bom entendedor, basta. E nem precisa de meia-palavra. E os nossos problemas? Bom, os nossos problemas não acabaram e não há ambervision que resolva tudo isso. Continuam os mesmos, é como se se todas as ideias, as propostas e a força da sociedade fossem morrendo aos poucos. É sempre mais, é sempre o mesmo, é sempre mais do mesmo. Precisamos mais é de nós. E sempre.


A mais justa das saias


Tem muita gente contaminada
pela mais grave manifestação
do vírus – a aids psicológica.


A primeira vez que ouvi falar em aids foi quando Markito morreu. Eu estava na salinha de TV do velho Hotel Santa Teresa, no Rio, assistindo ao Jornal Nacional. “Não é possível” – pensei – “Uma espécie de vírus de direita, e moralista, que só ataca aos homossexuais?”. Não, não era possível. Porque homossexualidade existe desde a Idade da Pedra. Ou desde que existe a sexualidade – isto é: desde que existe o ser humano. Está na Bíblia, em Jônatas e Davi (“... a alma de Jônatas apegou-se à alma de Davi e Jônatas o amou como a si mesmo” – 1 Samuel, 18), nos gregos, nos índios, em toda a história da humanidade. Por que só agora “Deus” ou a “Natureza” teriam decidido puni-los?

Mas de coisa que-se-lê-em-revista ou que só-acontece-aos-outros, o vírus foi chegando mais perto. Matou o inteligentíssimo Luiz Roberto Galizia, que eu conhecia relativamente bem (tínhamos até um vago e delirante projeto de adaptar para teatro Orlando, de Virgínia Woolf, com Denise Stoklos no papel principal, já pensou?). Matou Fernando Zimpeck, cenógrafo e figurinista gaúcho, supertalentoso. E Flávio Império, Timochenko Webbi, Emile Eddé – pessoas que você encontrava na rua, no restaurante, no cinema. O vírus era real. E matava. Aí começaram as confusões. A pseudotolerância conquistada nos últimos anos pelos movimentos de liberação homossexual desabou num instantinho. Eu já ouvi – e você certamente também – dezenas de vezes frases tipo “bicha tem mesmo é que morrer de aids”. Ou propostas para afastar homossexuais da “sociedade sadia” – em campos de concentração, suponho. Como nos velhos e bons tempos de Auschwitz? Tudo para o “bem da família”, porque afinal – e eles adoram esse argumento – “o que será do futuro de nossas pobres criancinhas?”

Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade – voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade. (É curioso, e revelador, observar que quando Gore Vidal vem ao Brasil, toda a imprensa se refere a ele como “o escritor homossexual” mas estou certo que se viesse, por exemplo, Norman Mailer, ninguém falaria do “escritor heterossexual”). Sim, a moral e os bons costumes emboscados por trás do falso liberalismo – e muito bem amparados pelo mais reacionário papa de toda a (triste) história do Vaticano – arreganha agora os dentes para declarar: “Viram como este vício hediondo não só corrompe, mas mata?”

Corrompe nada, mata nada. Acontece apenas que a única forma possível de consumação do ato sexual entre dois homens é mais favorável à transmissão do vírus, que se espalhou nesse grupo devido à alta rotatividade sexual de alguns. E é aí que começa a acontecer isso que chamo de “a mais justa de todas as saias”. Afinal é preciso que as pessoas compreendam que um homossexual não é um contaminado em potencial, feito bomba-relógio prestes a explodir. Isso soa tão cretino e preconceituoso como afirmar que todo negro é burro e tudo judeu, sacana.

Hetereos ou homos (?), a médio-prazo iremos todos enlouquecer, se passarmos a ver no outro uma possibilidade de morte. Tem muita gente contaminada pela mais grave manifestação do vírus – a aids psicológica. Do corpo, você sabe, tomados certos cuidados, o vírus pode ser mantido à distância. E da mente? Porque uma vez instalado lá, o HTLV-3 não vai acabar com as suas defesas imunológicas, mas com suas emoções, seus gostos de viver, seu sorriso, sua capacidade de encantar-se. Sem isso, não tem graça a viver, concorda? Você gostaria de viver num mundo de zumbis? Eu, decididamente não. Então pela nossa própria sobrevivência afetiva – com carinho, com cuidado, com um sentimento de dignidade – ô gente, vamos continuar namorando. Era tão bom, não era?

Caio Fernando Abreu
O Estado de S. Paulo, 25/3/1987


E chuta a família mineira!

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