segunda-feira, 26 de março de 2012

Sozinha (2)

O fato é que você precisa sair de onde está, fugir desse lugar que te corrói, se libertar, se renovar, se encontrar. Transcender o lugar comum. Não demore. Quer seja comigo, quer seja contigo, quer seja com outro, com outra, quer seja com todos. Caminhar é preciso, escolha dura, tarefa árdua, estrada longa. Inovar é preciso. E mais. Entregue-se a si, pegue o teu guarda-chuva mais colorido e cante na chuva, aceite-se como te quer, e do jeito que der, como merece, como a si merece, se mereça, se conheça, levante essa aba, mulher. Plane, voe, seja plena, você sabe ser assim, o foi um dia, e sabe também, lá no fundo das tuas entranhas, todos os minuciosos, melindrosos e arriscados passos que deve seguir. E então siga-os, verás o quanto lhe cairão bem. Continue na terapia também, pois faz bem, e vomite tudo aquilo que está aí dentro guardadinho desde quando tudo isso começou lá atrás, anos atrás.

Mas beba também, e coma nos melhores lugares, e trague todos os seus amigos, os melhores, como se fosse o último cigarro, liberte-se no vício, transe, ande nua pela rua, pela praça ou pela praia, divirta-se, embriague-se de si mesma, da tua alma, da tua costela, seja vida por inteiro, seja, seja, seja, e seja doce, inclusive, busque-se em cada ato, é tão bom, embora difícil, e desafiador, mas tão acalentador, você vai ver. E você sabe também, estimo, que as suas atitudes, as suas indecisões e o teu corpo são os teus bens mais preciosos, e isso nem precisa cotar, medir ou gritar, ou que venha alguém só como eu para reafirmar. Simplesmente são. E como. Não vou negar. Então não negue também. Não se negue. Fique sozinha por um tempo, quem sabe, ou fique junta, tanto faz, que seja, mas viaje, se entregue ao trabalho, aceite o amor que está escondido no fundo da bolsa de couro velha, embrenhe-se na dor que porventura ainda lhe restar, cultive flores, mergulhe de cabeça naquilo que lhe convir, que seja agora, porque a hora é agora, não dá mais, e no final, ou no começo, não sei, tudo isso vai lhe fazer tão bem também, e muito, não tenha dúvidas. E se depois dessas andanças ainda houver discrepância, ou ainda lhe sobrar uma pontinha de angústia, mínima que seja, comece tudo de novo, não tem problema, não tenha pressa, faça em dobro, jogue o seu jogo, sinta o seu corpo, ou seja mais leve se menos dilacerante for, mas seja você, ou simplesmente seja, sobretudo, abra logo o zíper deste buraco onde estás incrustada e volte a respirar mulher, menina bonita, bela como és, o mundo te espera.

domingo, 25 de março de 2012

Foi-se o fim: está apenas começando

Era um fim. Mas eu sabia, no fundo, que poderia ser começo. Um (re)nascer, um (re)viver, um (re)erguer-se. Rejuvenescer-se em si. Vida. Fonte. Juventude. Aceitar-se e entregar-se. Um feitio de desfeitas, um roteiro sem nexo, um baixio da alma. O fundo do poço, o destino de tudo, o amor sobretudo. Sigo em frente, contudo. O final se apresentando como início. O início sendo-se inteiro, e pleno, e novo. De novo. Sendo-se belo, e genuíno, e transparente. Possível como nunca imaginei. O outono que chega, o inverno que espera, o verão que se esvai. Primavera me acalma, antro negro deságua, estações sem demora. Sem hora, sem tempo e sem glórias. A minha vida é agora, eu sei. 

quinta-feira, 22 de março de 2012

Da série micro-contos (2)

Nasceu ele, mas era ela. Nasceu ela, mas era ele. Eram-se assim, então, mesmo opostos sendo. Homem que era mulher, mulher que era homem. E não era questão de querer, pois diferentes eram, aos olhos dos outros, mas normais em si. Contraditórios ao mundo, e assim os viam. Tortos. E simplesmente eram assim, sendo, e se encontraram em vida. Cruzaram-se nas ruas, na esquina da casa dela, que era ele, e então rolou. De súbito, inesperado, como se desconhecidos fossem. E eram. Demorou, destino tardio, mas gritou. E lindo também foi. João, que era Maria. Maria, que era João. Eram iguais em si. Entregaram-se um ao outro, e entregaram-se também ao amor. Dos dois. Pleno é o que foi, não tinha outro nome. Tragaram-se. Embriagaram-se. Diferentes que eram, pois eram, descrição improvável. Queriam ser eles, apenas, ou apenas serem, pois bastava. Queriam viver entre suas esquisitices e cafonices, matéria simples que era, queriam vida. Inaceitável era que não os aceitasse, a sociedade, posto que fosse de alguma forma inaceitável. Normais é o que eram, indiferentes, sobretudo, e nada mais. Não deixariam de lutar. E não deixaram. E então venceram, transcenderam, e então casaram-se, tiveram filhos. E então enfim os aceitou, a sociedade, e foram como deveriam ser, plenos. Como poderiam ser, juntos. E foram para sempre. Viveram. Ele, Maria. Ela, João. Eles, um só. Em casa, sendo-os assim, iguais, vestiam-se como João e Maria, como todos os casais. E na rua também. Normais que eram.

terça-feira, 20 de março de 2012

Uma cartinha para ninguém, ou para outro alguém...

Talvez as dicas não tenham lhe bastado. Talvez você não tenha se tocado pela minha escrita. Talvez você não queira, um dia, encontrar-me. Mas sabe que eu não desisto?

Silenciei-me por alguns dias, por alguns meses, anos, não pensando em você, mas em mim, e um pouco em você, ando refletindo se devo avançar o sinal, às vezes, e correr o risco de dar certo, pois não saberia também o que fazer se desse. E é uma hipótese, e tão somente. Ou então, quem sabe, se devo mesmo frear tudo isso de me declarar e esperar, do acaso, um encontro inusitado desses-tipos-de-cinema na esquina da tua casa. Seria bem bonito. 

Sabe que esses encontros costumam dar certo? Pois é, quem sabe não é o nosso caso. Nunca tive um, mas sempre carrego comigo essa coisa toda de primeira vez. Carma. Quem sabe. Sei que desde que eu comecei a te enviar essas cartas, algumas anônimas, outras escancaradamente minhas, friccionou-me um motorzinho rabugento que está instalado no mais profundo canto do meu peito dizendo para que eu devesse parar. E parei, então. Mas agora, não aguentando mais, voltei. Estou aqui revelando-me em prantos. Mas carregado de um sorrisinho também. Bem maroto. Outro dia, o meu terapeuta disse que as escolhas do coração devem ser colocadas na frente daquelas mais racionais, caretas e banais. “O diabinho sempre fala mais alto”, foi o que ele disse. Pois é genuíno. É verdadeiro. É umbilical. E é o que eu topei fazer também. E é por isso, então, que decidi expor-lhe mais uma vez a minha vontade em tê-la aqui pertinho um dia. 

Não bastasse, não obstante, incessante, tenho brincado também de escrever poesias. Tímidas ainda, eu sei, e não publicáveis também. Lembro bastante, acho que outro dia conversando contigo, estávamos naquele boteco ao lado do teu trabalho, tu revelastes que também brinca de escrever poemas e textinhos de vez em quando. Coisas também não publicáveis. Lembro direitinho das tuas palavras. Sei que, pelo sim, pelo não, você nunca me mostraria. Mas, volta e meia, pego-me fantasiando sobre quem sabe, um dia, inventarmos uma paquera dessas à escrita, à moda antiga, à nossa moda. Só nossa. Adoraria ler as suas, você nem imagina o quanto. Fazem tantas cócegas...

O fato é que desde que te conheci, e desde que comecei a revelar-te o meu desejo, as minhas vontades, as minhas sacanices e esquisitices, e a aparente timidez que carrego também, tenho sido um outro. E melhor, sabia? Nesse meu mundo de invenções, de falas interpretações, ilusões, aparições e um tanto de nãos, mas mágico, acreditando que tudo ainda pode dar certo, só falta você. Só falta você ao meu lado. E tem vaga ainda, ouso lhe dizer, arriscando a minha reputação em demasia. Vem, então, vem logo, vem ser comigo, vem ser com a gente, vem ser pra sempre. Vem?

domingo, 18 de março de 2012

Da série micro-contos (1)

Ela fingia que me amava e eu, tolo, fingia que acreditava. Na verdade, aceitava. Mas gostava também. Criei um pseudo-universo de sonhos. E nele imergi. E comigo Ana Amélia, fingida, esse universo era nosso. Fingíamos que sonhávamos, fingíamos acreditar no impossível, pois era possível posto que fosse frágil, útil, cômodo, nos entregávamos à gente. Ou fingíamos que sim. E houve paixão, e houve tesão, e houve muita diversão. Um quase amor. Era aparente que sim. Casamos, fingimo-nos felizes, nos enrolamos, desabrochamos, nos ancoramos naquilo que chamávamos de vida a dois, em nós dois, tivemos filhos também. Anos juntos, velhice tardia, chegou, e nunca nos preocupamos muito com os outros. Ou fingíamos que não. Deixe que pensem, pensávamos.

Ela sabia que eu sabia que ela fingia, e fingia não saber, e eu sabia que ela sabia, pois fingia, e fingia também não saber. Bem querer, mal querer. Por querer, sem saber por que, acabei arriscando-me. Entreguei-me ao amor, a nós dois, sem fingir, ou fingindo-me que sim. E Ana Amélia também. Pois bem, meu bem. Deixe que pensem, pensávamos. Não tem problema. Deixe que digam. Sentia-me bem. Sentíamo-nos bem. Mas Ana Amélia me deixou, não aguentou, anos depois, e aí a dor, a minha, não aguentou mais o nosso pseudo-carinho, a nossa fantasia, a nossa pseudo-união, hora só minha, hora só dela, hora nossa por inteiro, o nosso conto de faz de contas. Um mundo fingido, incompleto que era, não podia mais fingir. Danada. Fugia-se de si, em demasia, e o fato é que, fingimentos à parte, o amor acabou. Foi-se. O amor fingido que restava. O amor fingido que nos restava. Fingi-me, então, bem. E ela também.

O fato é que, uma vez abandonado, e fingindo-me bem, zen, mas sem, toda vez que vejo um carro vermelho, como o dela, confuso fica o meu dia. Apego-me a lembrar de Ana Amélia, então, mesmo fingindo que não. E assim é toda vez que eu fumo escondido também, mesmo fingindo que não. Escondi-me, afinal, e também, anos atrás de suas costas, no nosso pseudo-mundo feliz, de sonhos, em baixo de suas saias. Fingi-me dela, fingi-me nosso, deixei um pouco de ser eu. Meu. Nunca fingi-me meu, e talvez seja isso, fui nosso, e talvez seja hora. Deixei-me de lado, esqueci-me de mim e fingia, sempre, que tudo ia bem. Foi embora, mas vez em quando volta. Com o carro, com os cigarros e com as flores, como aconteceu há poucos minutos com as que eu acabei de ganhar de Estela, que não é Ana Amélia, mas finge-se que sim. E eu acredito, e até aceito, e às vezes gozo, mesmo fingindo que não. Vez em quando, também, escrevo sobre ela, sobre Ana Amélia, não sobre Estela, como agora estou a fazer. E às vezes finjo-me novo, ingênuo, supérfluo, e finjo então que a esqueci. E ela já bem, tão sem, que nem, finge ao longe que acredita. E assim vou levando os meus dias, vazios, distante, fingindo-me que sim.

sábado, 17 de março de 2012

E então...

E se estou só, nem disfarço, é que preciso fugir. E se estou alto, desfaço, é que preciso insistir. E se estou bem, jogo fora, mas se estou mal, me devora. Então me assopra, e morde, porque esses olhos são teus. Então me cuspa, me engula, só não me deixe partir. Então se sinta, me sinta, a nos sentirmos assim. Então me enrola, me cubra, pois eu serei sempre teu. Então se jogue, mas volta, não estarei sempre aqui. Então se toque, e goze, pois o farei por aqui.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Um quase ciclo

Era um quase começo e você me esnobou. Depois me quis. Pegou. Foi quase amor, foi quase paixão, foi quase verão. Foi quase inteiro. Passou. Um quase ciclo. Acabou. 

quinta-feira, 15 de março de 2012

Quem sou eu, depois de mim?

A escolha sempre foi minha. E os meus caminhos também. Expus-me, expôs-se, expusemo-nos. Eu e a minha alma. E a minha escrita também. E se a depressão foi poética, escolha dura, é porque em mim também se hospedava esse desejo. Experiência necessária. Mudou-me. Estou novo, de novo, não sou mais eu.

terça-feira, 13 de março de 2012

Acíclico

Tudo não cíclico, acíclico é. Redundante, óbvio, impreciso, antes fosse, posto que existe o meio. Estrada. Caminho entre o começo e o fim. Um quase ciclo sem fim. Um quase ciclo sem mim. Mas sem começo também. Um quase nada. Encerra-se assim. Sem mim. De novo. Cruzai-vos. Um dia quem sabe. Vem outro e começa. Com outros, talvez, com novos, vocês. Insensatez. Ou não, pois não se encerra também. Não engatou. Não progrediu. Não avançou. Pifou. Sequer começou. Morreram-se os outros, morreu-se o ciclo, morri-me então. Em mim. De novo. Morremos todos, morremos chulos, morremos tolos. Fúteis, inúteis, intragáveis. Assim que somos. Topamos. Sangramos. Esvaíram-se. Evaporaram-se. Fomos. Todos. Culatra é o nosso nome. Vãos. E o nome disso que chamamos de ciclo é só isso, não tem começo e nem fim. Surge. E só, e nada mais. Não mais. Começa outro, vem, a roda gira. E é gigante. Lenta. Angustiante. Se termina, não sei. Te conto depois. Pois acíclicos somos, sempre. E tortos também.

domingo, 11 de março de 2012

Se essa rua fosse minha...

Se essa rua fosse minha, eu cuidaria das plantas na calçada, eu teria uma praça sem regalias, sem falsas madrinhas, e uma cidade sem hipocrisia. Eu usaria fantasia. Teria carnaval o ano inteiro, e teria uma rua mais limpinha, sem coxinha, uma coisa meio assim, mais moderninha. Eu levaria uma vida sem preocupação, sem nãos, sem direção. Porque o nome disso, que chamamos de rua, devia ser nosso. E ponto. Com mais amor, por favor, e liberdade também. É preciso. Abraçar mais, gratuitamente, andar de bicicleta. Corrente. Eu quero muito. Podemos. Porque eu busco uma rua florida, em trânsito que flui, sem ser escondida. Uma rua com duelos, desnuda, em um tempo sem flanelas, e sem frestas nas janelas. Uma rua com velhinhos, com tabuleiros, com pipoqueiros, e sem muitos sinais vermelhos. Uma rua de balões amarelos, ou azuis, ou anis, de algodões-doces coloridos e corações esculpidos. Que pulsem. Quem sabe. Não quero travestidos, não quero bandidos. Que sejam banidos. Porque o que eu quero mesmo é uma época à minha maneira, laranja, à tua. E uma rua que seja minha, que seja nossa, aonde eu possa. E nada mais.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Vendo-me

Exaustivamente vendo-me, outro do que eu sou, ou o que sou, o que sobrou, o que restou incansável, percebo que, por sobrevivência, por intolerância, por ignorância ou por tudo o que está em jogo, ou o que está por vir, e virá, em dobro, muito mais do que ver-me, a questão é vender-me.

terça-feira, 6 de março de 2012

Bye, bye

Foi-se. Despediu-se, mesmo que temporariamente, o lado negro dessa nonstop mind. Progredi. Transcendi aquilo que habituei-me a chamar por prisão na minha alma. Libertou-se, libertei-me, ou estou libertando-me ainda, é um processo, mas o fato é que vou adiante, sigo, não duvide, pois eu não mais. Corrida frenética. Ainda não é um vermelho cruel, vivo em sua plenitude, é meio invisível, fosco, é verdade, mas dá indícios de que me levará bem longe. Quem sabe. Porque vermelho é vida, é novo, é a cor que eu mais gosto, e é também a que escolhi para essa nova parte da estrada. Se será bela, não sei. Que segue ao incerto, não tenho dúvidas. Continua. Mas o asfalto não é mais negro, apenas, e sombrio, frio. Floriu. E nada melhor do que rumar à primavera de uma nova maneira, a minha, só minha, na expectativa de que enfim eu me depare comigo lá na frente. Daqui, vou indo ao meu encontro. Até já. Bye, bye.

domingo, 4 de março de 2012

O que eu sinto

O que eu sinto é bom, é ruim, um quase nada. Mexe comigo, é sujo. Rasga. É uma simpatia pela anarquia, pela rebeldia, pela folia, é um desejo de ser. Estripulia. O que eu sinto é leve, esmaga, contraditório também, pois é suave. Conforta a mim, conforta a ti. E é bem difícil entender. Incompletude. Inesperança. Ineficácia. É controverso comigo, é o contrário da minha história, não flerta nem de longe com os ensinamentos da professora de literatura na escola. Porque não cola. É tanto, é muito. Aceito. É esplendor, e não é dor, não é amor, ainda, e também não é calor. Fosse. Tremor. E é frio, muito. E é fraco, vago. Mas é esbelto, claro. Revezo-me. Trago-me. Flutuo. Sinto-me rude, santo, tardio. Antes que seja tarde. Erra, falha, valha, mas acalma-me na hora. Não vá embora.

Se é plenitude o que eu sinto, não desvendei, mas sei que sinto, e sei que é bom, e sei que é pleno, e é pequeno, ardente, e é gostoso também. Não é em vão. Não. Eu sei. Nem aqui, nem lá, e nem ao longe. Entrego-me. Porque é chama, acende. É genuíno, não vende. Solto-me. Escuta. Solta-te. É fogo, transborda. Me vale. É ferida aberta e exposta, posto que me fere. É o meu peito, aberto e sonhando, posto que me arde. É a mim o teu ventre chamando e pulsando, posto que clamo, veneno, posto que mata. Não dói. Impõe-se. Sinto que é bem, de bem, faz bem. Vem. Sinto alguém. E esse alguém és tu, também. Me cala. Silêncio. Consente. Seja pele, a minha, vaza. Venha, filtre, não deixe nada. Anestesia. Nostalgia. Querer de novo. É o suor do teu corpo escorrendo no meu, a lágrima do teu rosto em prantos, é o destino chamando, são os teus olhos em brasa, a tua mão em mim, é um pouco da lembrança daquele brinco grande e espalhafatoso que achei outro dia jogado na rua outro dia depois que te conheci, mas que não pude devolver-te, pois não te achei em nenhuma dessas redes sociais que eu costumo frequentar. Ainda. Pois é história anunciada. Saiba. É minha vida, é a tua, são os novos tempos. É paquera, um quase sim, assim, assim.

O que eu sinto eu sonho, é sonho, quase não durmo. Insônia vem, insônia vai, insônia volta. Fica. Talvez você. E o sonho volta. Laranja venoso, gosto de ferro fundido amargo, céu de algodões-doces coloridos, cheiro de madeira velha molhada. Não é um nada. Vem sem traquejos. Vem. Seja quase, seja tudo, seja em mim. Pra mim. Porque o que eu sinto, ressinto. Porque o que eu sinto, pressinto. E pressentira, mesmo sentindo, que iria cruzar o teu caminho em breve. Estou aqui. É a negação do teu corpo que não aguenta mais, é a sensação do teu toque, é a revelação dos meus desejos mais ocultos, dos teus, bandidos, floridos, escondidos na varanda da tua casa. É um novo encontro. É o acaso. E é espera também. Não há pressa, saiba. Não há angústia também. Mas o que eu sinto é grande, não é só isso, é mais, transcende, não há como explicar, pois é difícil, e também não é saudade, porque ainda não o foi, mas é vontade, faz falta. O que eu sinto cheira, tem gosto, é cheio, em breve um gozo, espero, em breve um quero. Pois faz rodar-me as ventanas. Chacoalha. Estranha-me sentir, talvez não mais, porque me move, me hipnotiza, e devaneia. Esperneia as minhas escritas. Não fujo. Prometo. E o meu coração cafona também. E como. Porque o que eu sinto, tem vezes, é que a vida quis me fuzilar antes que eu te encontrasse, ou reencontrasse, ou te conhecesse, ou tivesse ao menos a chance de lhe dizer tudo o que eu queria, e o fez, tentou, descarregou o tambor com toda crueldade como de quem queria acabar logo com tudo isso. Indigna. Pifou. Falou então a minha alma. Gritou. Eu quero reencontro. Era festim. Falhou.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Morte em vida, Severino

Estimado Severino,

Quando a madrugada caía, e a minha alma já imune aos surtos de outrora, e eu ao relento, e em prantos também, pude de súbito pincelar algumas flechadas do acaso, ou do presente, não sei bem, e consegui também congelar e detectar singelas mensagens que pairavam como espectro, ao meu redor, acho que uma áurea trazida por fadas, por anjos ou por duendes verdes. Lembrei-me de ti e gostaria, com a tua licença, de entregar-lhe esse epílogo.

É que esse ano vai ser leve, lindo, meu, nosso, todo, vai ser inteiro, estou sentindo, mesmo que eu morra, pois eu acordei achando que vou morrer, mas não tem problema, não se assuste, é uma morte pretendida e acho até que batalhei por isso. Que bom que cheguei até aqui. É que a minha mente voltou a ser ebulição, não para, não dorme, não descansa, eu ando fraco, um frasco vazio, esquecido, alimentando-me pouco, emagrecendo, quase sumindo, quase me indo, é como se eu estivesse realmente morrendo aos poucos. Mas não é uma morte morrida, é uma morte querida, é uma morte do jeito que eu queria, à minha maneira, acredite, eu meio que já esperava isso. Lutei. Não há tristeza, nem melancolia, não há pesar e também não há nenhuma doença ou surto diagnosticados. Não há nada disso. Há só eu. E também há alegria, muita, por mais incrível que pareça. A carne anda trêmula, Severino, e as pernas bambeiam. O sono não vem, os olhos estão roxeados, inchados e venenosos, é como se não fechassem, e as pálpebras, negras, andam deveras saltitantes. Será que é o carnaval, aquele lindo que se foi? Ou os cinco trabalhos que eu tenho? Ou a solidão que ainda é uma constante? Ou os tempos novos que estão por vir? Não sei, sei que mesmo fraco, frasco, bandido, incongruente e só, e distante às vezes também, a sensação acaba sendo boa. E assim vou indo, levando os meus dias em direção ao norte, em direção à morte.

Mas tenho medo agora, Severino. Tenho medo do agora. Mesmo encorajado em demasia para enfrentar esses meus dias, esse cotidiano cafona, essa labuta cinzenta e todos os meus dilemas, ainda tenho medo da morte real, dessa morte do agora, iminente, tenho medo de uma morte morrida. Não é um medo que me aflige, como outros que já tive, é verdade, mas outro dia morri vivendo e isso já foi danado de difícil. Acho até que já lhe falei sobre isso em outras cartas. Seria ela, essa danada, que um dia convoca a nós todos com todas as suas garras, as suas correntes e os seus sarcasmos, batendo à minha porta? Seria um aviso dos santos, Severino? Dos anjos? Dos podres? Dos padres? Dos trastes? Não, não sei. Não sei o que seria isso, no fundo, e então me pego angustiado. Ando tão fraco, só sei disso. E não tem vitamina c ou hiperbáricas que me salvem. Sabe o que é uma hiperbárica, Severino? É uma câmara dessas que os médicos usam para acelerar a cicatrização das feridas, uma coisa meio tipo Wolverine. Chique, não é mesmo? Pois bem, mesmo com ela também não deu certo. Acredite. E ando tão só também, mesmo cercado de muitos amigos, novos ou velhos, e não culpando-os, então não tenha dó. Suplico. Não é disso que estou falando. Pois também não há sofrimento, repito. É só uma sensação estranha, um suave descolamento daqui, da vida, da terra. Da minha alma libertina.

É uma fraqueza boa, é uma fraqueza à toa, é uma fraqueza que, talvez, esteja me transformando em outra pessoa: metade morta, metade viva. Estou pensando até em aceitar esse estigma, essa carapuça, esse faz de contas, assumir de vez esse conto de desencantos, e, quem sabe, topar morrer para depois nascer de novo, nascer outro, nascer eu. Alguém mais eu, um eu novo, sabe? Vai ser tão bom. Eu quero é ser, quero ver todos sendo, e pouco me importa o resto, ou o que vier depois, ou até mesmo o que não vier. E se não vier, tudo bem, não terei problemas com isso. Pois um terço de mim já se foi quando eu morri da primeira vez, algumas partes pifaram, estraçalharam-se e arranquei-me, um pouco a contra gosto, o exagero de quilos. E não param de ir. Continuam. Frenéticos esses meninos. Esvaem-se. Como também esvaíram-se todos os meus sentimentos em sangue, as minhas angústias em carne, a minha tristeza em lágrimas e a minha alma ao vento, e a seu tempo, antiga, velha e suja, tanto foi que a joguei na lixeira do vizinho anteontem. Não sou mais pele, Severino, vaza. Acho que nasci de novo.

Aceite essa condição com a minha mais pura lealdade.
Encontramo-nos lá em cima, certo?

Com os meus sinceros agradecimentos.
Até breve.