sábado, 15 de setembro de 2012

Da série micro-contos (3)


Eu estava sentado embaixo da marquise porque era uma tarde chuvosa. Acendi um cigarro e ela também. Percebi-a arrumando as mexas de seu cabelo devido ao forte vento daquele dia e mesmo bela parecia-me no entanto estar triste por algo que talvez eu fosse incapaz de compreender. Permanecemos silenciosos, muito embora inquietos, eu em uma mesa a sós e ela na mesa ao lado da minha, eu observando-a e ela observando a mim. Retomei a escrita e pedi um expresso duplo, pois precisava recuperar-me da insônia da noite anterior, enquanto ela deliciava-se com um delicado e colorido milk-shake de frutas vermelhas. Eu escrevia poesias nesta tarde, não sei por que, pois eu nunca costumo escrever poesias, e desde o momento em que me assentei embaixo da marquise devido à chuva fina que caía tive a sensação de que a moça da mesa ao lado era estrangeira, assim como eu, e que era também escritora.

Usava um all-star surrado vermelho, um cachecol amarelo e tinha uma flor entrelaçada em seus cabelos. Olhava ao nada, como se buscasse inspiração, olhava ao redor todo florido, olhou a mim rapidamente e sorriu um sorriso desses que só se vê nos filmes ou nas novelas e que não era para mim, eu sabia, retirou o bloco reciclado da bolsa e começou a escrever e então fui eu quem sorri, maroto, como se confirmasse a hipótese de segundos antes: a moça era escritora. Curioso e entusiasmado, não entendia muito bem o que estava sentindo e muito menos o que se passava na cabeça da moça da mesa ao lado, pedi um licor de chocolate para prolongar a minha estada e passei de súbito a sentir-me um pouco mais útil do que como andava me achando em meus dias, como se parte de sua inspiração, e isso me deixou ligeiramente excitado e levemente feliz. Frenético, eu é que fiquei inspirado com a moça da mesa ao lado e então voltei a escrever. Inspiração recíproca, talvez, aceitei-a de prontidão e palavras me saíam como nunca, palavras lhe saíam como eu nunca tinha visto, era um momento bonito de se ver desses que poderiam acontecer todos os dias em qualquer esquina de qualquer canto estranho do mundo, mas acontecia ali, e acontecia comigo e com a moça da mesa ao lado, com a gente meio que querendo se conhecer, pensava ensaiando em como talvez pudesse ser a abordagem, mas de repente ela fechou o bloco reciclado, colocou-o novamente em sua bolsa e se levantou como se decidida a partir, parecia-me apressada, e saiu então caminhando a passos largos.

Desconsertado, pedi então o tradicional parfait de manga daquele café daquela praça semi-abandonada próxima à estação quarenta e sete do metrô, pois apenas o doce talvez fosse capaz de fazer-me segurar a onda porque a inspiração esvaía-se aos poucos e porque a sensação de não mais vê-la, amarga, também começava a se entranhar por todo o meu corpo. Decidi-me então por partir também e quando prestes a pedir a conta e já acenando ao garçom ela retorna do nada, a moça da mesa ao lado, e senta-se de novo a escrever. Olha-me com certa timidez e um ar singelo desses que eu não estou acostumado, percebo de imediato, e pede um licor também. Sorri, de novo, e acendi mais um cigarro como se aliviado pela volta da moça da mesa ao lado. Era como se estivéssemos a sós e o mundo parado, mas era uma rua movimentada e os carros passavam, e os andantes também, e o frio que eu não estou acostumado corroía-me a costela e todo o resto do meu corpo, mas aceitei-o categoricamente decidido a permanecer silenciosamente onde estava embaixo da marquise escondido da chuva fina que ainda caía.

Minutos depois, uma amiga chegou e sentou-se junto a ela. Cumprimentaram-se e começaram uma conversa dessas que poderiam durar uma vida e pediu um café ao garçom enquanto ambas me olhavam como se papeando sobre mim e eu como se estivesse muito longe mesmo sentado na mesa ao lado não conseguia ouvi-las de modo algum, o que me deixou bastante ansioso. Acendi mais um marlboro vermelho trazido de longe cujo estoque já estava acabando e a moça da mesa ao lado que depois de alguns minutos já parecia-me menos entretida no papo acendeu um cigarro galaxy desses que não se vende mais no Brasil, talvez sua saída repentina tivesse sido para comprá-los. Parou de escrever, inquieta, acho que a presença da amiga que não parava de falar tirava-lhe o foco ou eu mesmo tirava-o, não conseguia decifrá-la, e me olhou novamente de forma mais direta dessa vez, agora como se quisesse me dizer algo, me falar algo, me chamar ou me convidar para sentar ao seu lado na mesa ao lado, talvez, era como se quisesse revelar-me o incômodo pela visita inesperada da amiga que não parava de falar e não deixava-nos mais a sós ou a sua inquietude em retomar a escrita sobre mim ou algo que eu ainda fosse incapaz de entender, talvez sobre a gente ou sobre a sua escrita ou sobre a sua aparente timidez ou quem sabe sobre o encontro inesperado e silencioso no café daquela praça semi-abandonada perto da estação quarenta e sete de metrô naquela tarde chuvosa de terça-feira que poderia ser uma tardes comum dessas quaisquer.

Eu não sabia sequer o seu nome, tampouco tinha a visto antes ou ela a mim, mas eu sabia dela, ela sabia de mim, sabíamos um do outro e sabíamos também que talvez jamais tivéssemos nova oportunidade de nos revermos ou conversamos ou de apenas trocarmos olhares e nos inspirarmos, quem sabe, e eu até ensaiei iniciar algum tipo de interação com ela, e acho que ela comigo, mas as circunstâncias não permitiram-nos e eu também não sabia muito bem por onde começar, pois além de muito tímido eu também estava precisando entregar-me à minha escrita e então empenhado dei o último trago no cigarro e apaguei-o para seguir adiante, só que a ponta do lápis tinha quebrado e eu sem pensar nesta possibilidade havia deixado todos os lápis-reservas no quarto do hotel. Sorri com um alívio estranho, pedi a conta, levantei-me e comecei a caminhar sem me permitir lançar sequer um olhar para trás, fui em direção ao Cerro San Cristóbal porque já estava prestes a fechar e aquele era o último dia da viagem, achei que talvez ela pudesse entender e achei também que talvez fosse apenas mais um desses contos desencantados e desencontrados e que pudesse ter acabado por ali.

Subi toda a ladeira do parque em um desses funiculares coloridos e velhos que parecem que vão se despencar a qualquer instante ou em todos os instantes, na verdade, e já lá do alto do Cerro, alguns minutos depois e praticamente entregue a uma escrita mais sóbria e triste, já não saíam-me poesias como pouco antes ao mesmo passo em que a chuva fina parava de cair e o sol reaparecia bonito e imponente com os Andes de fundo, brilhante e vistoso, eu consegui localizar o café daquela praça semi-abandonada próxima à estação quarenta e sete do metrô de Santiago e com certa dificuldade consegui avistar também a moça da mesa ao lado que usava all-star surrado vermelho, cachecol amarelo e flor nos cabelos junto à sua amiga acenando ao garçom para que pudessem pagar a conta. Parecendo-me inquieta, ainda, e com um galaxy em uma das mãos, entregou o dinheiro ao garçom com a sua outra mão dispensando o troco e saiu caminhando já sozinha em direção oposta à da amiga que parecia-me caminhar rumo à estação quarenta e sete do metrô. Olhei o relógio, então, já era quase cinco e faltava muito pouco para que a entrada do parque fechasse, mas talvez fosse tempo ainda de subir o Cerro em um dos últimos desses funiculares coloridos e velhos que parecem que vão se despencar a qualquer instante.

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