o
telefone tocou quando estávamos sentados um de frente ao outro na sala antiga de
parede amarela e ele gentilmente apagou o cigarro e pediu-me licença para
atender retirando-se ao cômodo vizinho. silencioso como quando nos conhecemos
na biblioteca pública do bairro, o moço do guarda-chuva vermelho falava
pouquíssimas palavras enquanto eu ao longe não conseguia visualizar os seus
trejeitos e pude apenas ficar imaginando se talvez não fosse algum quase amor
sugerido pelas lindas poesias do Neruda que eu lia enquanto o esperava com um
café de punho na sua sala antiga de parede amarela. quando voltou, sentou-se envolvido
por um quase silêncio à poltrona herdada de seu avô. “acho que estou
apaixonado, sabe?, mas não sei se estou pronto ainda”. “pode falar...”, disse-lhe
meio sem jeito e ainda um pouco tímido, mas surpreendido com a entonação de voz
do moço do guarda-chuva vermelho e com o seu olhar palpitante que revelava-me
um desejo incompleto em dividir algo que talvez estivesse guardado apenas
consigo. “conhecia-a há alguns anos, Helena, nunca mais nos vimos. dia desses
ela me mandou flores, foram essas margaridas que estão na prateleira, e desde
então eu não paro de comprar margaridas. não a encontrei e não a tenho
encontrado, recebi apenas algumas cartas e algumas dúzias dessas belas margaridas,
mas sinto que já a amo de alguma maneira”. silenciou-me por completo, eu que sempre
falava muito e que havia surrupiado a sua privacidade quando atendi o telefone
na biblioteca pública, e o silêncio prevaleceu como prevalecia na maioria do
tempo. ele sabia e eu inquieto em meio às suas margaridas entendia que a nossa conexão não estava nas
palavras, mas em uma taciturna compreensão sobre o que era, afinal, a solidão.
havia amor? na certa, duvidávamos. e não tocamos mais no assunto.
trepidante,
absorvi-me em uma sensação de que talvez não fosse ao telefone um quase amor
sugerido pelas lindas poesias do Neruda, mas um estranho amor autêntico que existia em Helena porque percebia a sua respiração fugaz mesmo parecendo-nos impossível novamente o
amor e porque olhei à janela, também, e não tinha mais sol porque já era noite. garoava, mas era noite de lua cheia e isso talvez pudesse ser algum sinal e eu sempre apego-me
a sinais como quando apeguei-me aos seus tiques na biblioteca pública
percebendo-o incomodado com a minha presença perguntando sobre as horas. o
silêncio absoluto tomou-nos novamente, ele me emprestou alguma roupa para que
eu me sentisse mais confortável e indicou o sofá vermelho como um possível
lugar para que eu pudesse me encostar. resolveu imergir-se no livro de contos
que o aguardava desde quando havia se ido o último sol radiante e amarelo feito ovo e
não trocamos mais nenhuma palavra. era noite de domingo e a primavera já se
anunciava elegante, me lembro bem, e caímos no sono por ali mesmo. eu no sofá
vermelho e ele na poltrona herdada de seu avô encostada na parede amarela da
sala antiga. quando acordei, vi ao lado do telefone uma carta escrita à mão assinada
por Helena e sorri, pois talvez ela realmente existisse. não tive coragem de
ler ou tocá-la, sequer, e também não quis acordar o moço do guarda-chuva
vermelho. vesti a minha roupa que havia ficado estirada no cômodo vizinho, apanhei o livro do Neruda para que pudesse
devolvê-lo à biblioteca pública do bairro e decidi partir caminhando em silêncio como sugeria-me o encontro com o moço do guarda-chuva vermelho e em meio à garoa que ainda permanecia intermitente naquela estranha manhã de primavera. mas não sem antes
regar, uma por uma, todas as suas belas margaridas que se mantinham intactas na prateleira da sala antiga de parede amarela.
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